Quando terminou a guerra dos farrapos de Canudos, uma guerra dessas aí!, Serapião Pintumba perambulou por muito tempo no sertão. À proporção que perambulava, penetrava, e, penetrando, sua miséria aumentava - pois o interior fazia as cidades empobrecerem com ele. Até que um dia chegou a uma aldeia de casas de taipa, distante de tudo, isto é próxima de nada. Serapião bateu numa porta e pediu um pedaço de pão. Foi escorraçado. Bateu noutra porta, pediu um pedaço de queijo de cabra. Foi chutado. Bateu em outra porta e pediu um pedaço de rapadura. Foi cuspido. Bateu noutra porta e pediu uma lata velha. Foi atendido. Aí, Serapião se acocorou no meio da praça, fez uma trempe, botou a lata em cima e ficou esperando o destino. O destino, como sempre, juntou uns curiosos: "Que qui tu tá fazendo aí, Serapião Maluco?", perguntaram. "Uma sopa", disse Serapião. "To veno nada", criticou um velho crítico de sopas local. "Tão marranja água que cê vai vê", disse Serapião. Arranjaram água pro Serapião, e fogo, e ele assim que a água pegou uma fervura, jogou duas pedras dentro da lata e ficou lá mexe que mexe com pau. "Que sopa é essa?", veio a próxima pergunta. "Sopa de pedra", disse Serapião. "De peeeeedra?", espantaram-se os habitantes da aldeia, em uníssono. "E pode sopa de pedra? Nóis num cômi sopa aqui tem mais di meis. Si dava pra fazê sopa di pedra, a gente toda tava toda limentada". Um demagogo presente aproveitou a dúvida no ar e vociferou: "É como os eternos leguleios, eternos prometedores de miragens, embaindo o povo do sertão com falácias infantis, acenando para o povo com soluções mirificas enquanto palacianos governosos se locupletam com suas gordas mordomias. Mas mesmo esses profissionais do engodo jamais pensaram em proposta de solução alimentar tão estapafúrdia!" Tomou ar e perguntou noutro tom: "Que é que você pretende exprimir, dialeticamente, com sopa de pedra?" "Bem", respondeu Serapião, um tanto intimidado, a sopa pode sê só di pedra, né?, e inté qui sai boa. Mas se ocês mi arranja um pidacinho de tocinho, um pezinho di cove, um naquinho de rapadura, aí dava muito in mió, né memo?" "Quê qui há, Maneco, sem essa!", disse então um pau de arara que tinha trabalhado em Ipanema durante seis meses, pendurado num edifício da Vieira Souto, e por isso era considerado o grã-fino da aldeia. "Sopa de pedra é sopa de pedra! Não vem com subsidios que aqui não tem disso não. Você falou em sopa de pedra; vei ser sopa de pedra! Pessoal, todo mundo fazendo sopa de pedra aí na praça!" Em poucos minutos, a praça estava cheia de panelas, caldeirões, chaleiras, terrinas e latas fervendo com pedras. E cada um já procurava fazer sua sopa melhor que a do vizinho, com um sabor diferente: rocha, granito, sílex, calcário, pedra-pomes, basalto, pedra-sabão, pedra-ume, pedregulho. Mas terminou tudo numa grande decepção. Nenhuma das sopas de pedra tinha o menor gosto de sopa. Pior ainda - não tinha nem gosto de pedra. Foi aí que um caboclo mais imaginoso descobriu a única utilidade da pedra capaz de, naquele momento, satisfazer a todos os habitantes da aldeia. Tacou um paralelepípedo na cabeça de Serapião, que caiu ali mesmo e logo foi apedrejado por todo mundo, morrendo dilapidado.
Como na Bíblia.
MORAL Não se deve abusar da miséria do povo; ele acaba ficando empedernido.
FERNANDES, Millôr. 100 Fábulas Fabulosas. 7.ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2001. 76-78 p.